Afrânio Coutinho.
Se perpassarmos o olhar
interpretativo pela literatura produzida no Brasil, saltar-nos-á de logo à
atenção o drama de sua formação. O ritmo da atividade literária obedeceu, entre
nós, a um movimento duplo: de um lado, a desintegração e o abandono de uma
velha consciência, do outro, a construção subjacente de uma nova. Dada a
contingência de nação colonizada por europeus, os portugueses, e em virtude da
ausência de uma tradição autóctone que pudesse servir-nos como passado útil, a
evolução de nossa literatura foi uma luta entre uma tradição importada e a
busca de uma nova tradição de cunho local ou nativo. Esse conflito das relações
entre a Europa e a América, esse esforço de criação de uma tradição local em
substituição à antiga tradição européia, marcam a dinâmica da literatura desde
os momentos ou expressões iniciais na Colônia. É um tema que se esboça desde o
primeiro século, quando os jesuítas, Anchieta sobretudo, escrevendo a sua
epopéia de conquista espiritual e imperialismo religioso, estudam as línguas, a
etnografia e a vida social indígenas, no intuito de melhor atuar sobre a
mentalidade dos primitivos habitantes, a par da dos colonos, utilizando-se da
literatura - poesia e teatro - como instrumento de penetração e convicção. Ao
lado dessa corrente didática, que forcejava por adaptar-se à situação local,
inclusive valendo-se do artifício do polilingüismo dada a variedade de idiomas
que caracterizava os diferentes públicos que tinha em mira, firmou-se, também
desde cedo, uma corrente de exaltação da terra, os "diálogos das
grandezas" forma de ufanismo nativista, que deu lugar a um verdadeiro
ciclo de literatura em torno do mito do eldorado. As idéias do nobre selvagem e
da terra prometida ou da fartura são outros tantos mitos que se constituem
desde o início, através dessas "prosopopéias", "diálogos das
grandezas", "ilhas da maré", cantos genetlíacos em louvor de uma
civilização nascente ou de façanhas de viajantes, guerreiros e missionários.
Daí por diante, pelos séculos XVII e XVIII, através dos líricos e dos oradores,
entre as quais avultam Antônio Vieira e Gregório de Matos, é uma voz nova que
se faz ouvir, cada vez mais em discrepância com a da mãe-pátria, ou em luta
para desembaraçar-se e libertar-se da aparência lusa que a caracterizava, luta
que culminará no Romantismo.
Essa luta entre duas
tradições - a luso-européia e a nativa em formação - teve ainda expressão em
outro tema: o conflito entre a concepção da literatura como produto espontâneo
e telúrico e o conceito da literatura como flor de cultura complexa e de
elaboração pessoal consciente. Esse tema, de remota origem, penetrou fundo em
nossas teorias literárias, colocando frente a frente, ao longo de toda a nossa
evolução, dois tipos de escritores: os inspirados, telúricos, virgens,
instintivos, que buscam inspiração na terra, no inconsciente; e os requintados,
cultos, desenraizados, que se voltam para as fontes culturais européias, bem
definidos por Afrânio Peixoto, quando afirmou que o brasileiro, em vez de ir à
Europa, "retornava" à Europa.
Resultado ainda desse
conflito é o problema das relações entre o escritor e a natureza. O esforço
pela fixação de uma tradição dirigiu-se para a natureza, em face da qual a
consciência literária se postou ora em atitude de contemplação exaltada, ora
num pessimismo trágico de sombria tonalidade, sucedendo-se ou opondo-se vagas
de lirismo e ufanismo entusiastas e de realismo pessimista. O indianismo, o
sertanismo e o regionalismo são expressões altas dessa presença, por outro lado
constante em nossa poesia lírica, evidenciando o papel que desempenha em nossa
vida mental a natureza, como finca-pé das aspirações nativistas, presença ou
prestigio que tende a dissolver-se à medida que, desde o século XIX, se vem
alargando e solidificando o processo de urbanização.
O conflito entre as duas
tendências - a que arrasta para a Europa e a que busca estabelecer uma tradição
local nova - constitui os pólos de nossa consciência literária, gerador de um
drama em meio do qual ainda agora vive o país. Drama que se reflete não apenas
na imaginação criadora, mas também na crítica e compreensão da literatura, pois
ele envolve a própria concepção da natureza e função da literatura no Brasil.
Essa a nossa maior tradição, e que ainda governa a vida literária: cultural e
literariamente somos uma nação em curso. A longa marcha no sentido desse
autodomínio teve dois pontos altos: a fase romântico-realista do século XIX e o
período modernista contemporâneo.
Foi durante a década de 1920
a 1930 que a consciência literária brasileira atingiu a maioridade. Então,
perderam os brasileiros a noção de expatriamento cultural, podendo-se aí situar
"o nascimento do Brasil e o conseqüente esmorecer da Europa dentro de
nós", como diz com justeza Gilberto Amado (Minha formação no Recife, pp.
353-5), acrescentando palavras precisamente de 1926 que registram o fenômeno:
... o Brasil aumentara o seu
poder de assimilação. A Europa é hoje para nós a viagem, estudo ou recreação, o
prazer do clima, o encantamento artístico, a variedade dos dias animados longe
das obrigações quotidianas, o atrativo intelectual, a curiosidade simplesmente.
Mas não vive dentro de nós. Em substância, não nos interessa senão como um
teatro, um espetáculo, um livro. Estamos, os da geração atual, inteiramente
desprendida dela (...). Os fatos da Europa não nos impressionam senão como
peripécias e os homens como figuras do drama humano; entre eles e nós não se
estabelece nenhum dos laços profundos que nos ligam aqui a todos os fatos e a
todos os homens do nosso meio. Obra de cultura social, conseqüência da formação
dentro do país de uma vida unânime que se reflete no fundo de nossa alma,
enchendo-a toda de seu rumor, sem deixar espaço a outros ecos, o certo é que as
novas gerações então livres do pesadelo que afligiu Nabuco. E não há como
atribuir esse fato a outra causa que à república, à sua capacidade de criar
Brasil, dentro do Brasil.
Essa tomada de consciência
do Brasil pelos brasileiros, correspondente a uma volta do exílio intelectual,
foi, todavia, um momento que se processou lentamente, em conseqüência do
Romantismo.
Naquela época, presos muito
embora por laços culturais à Metrópole, já conquistáramos a consciência de
nossa nova moldura física e social, e a noção de que a literatura poderia
produzir-se sob formas novas, exprimindo novas matizes de sensibilidade e uma
nova experiência. Foi o momento em que a velha psique colonial cedeu o lugar a
forças espirituais que plasmavam, na alma do povo, uma nova mentalidade literária.
Dessa encruzilhada partiram ondas de energia a cujo ímpeto se devem os
movimentos de extraordinária fecundidade intelectual de então no Brasil, muito
tempo depois ainda fazendo sentir os seus efeitos.
O "shock of
recognition" dessa mudança encontra-se na polêmica em torno de A
Confederação dos Tamoios (1856), em que participaram José de Alencar, Araújo
Porto-Alegre, Monte Alverne, Alexandre Herculano, Castilho, Pinheiro Guimarães
e o próprio D. Pedro II. É o momento em que a consciência literária se corporifica,
em que os problemas literários são encarados de maneira técnica, em que surge a
consciência de que se estava fazendo literatura sob feitio novo.
É Alencar quem realiza essa
transformação, cabendo-lhe, por isso, o posto de patriarca da literatura
brasileira.
Estudadas as suas cartas
sobre A Confederação dos Tamoios (1856) e a sua autobiografia literária Como e
porque sou romancista (1873), bem como sua polêmica com José Feliciano de
Castilho (1872), verifica-se a noção que ele tinha dos problemas literários,
como os estudou a fundo nas obras clássicas e modernas, através dos tratados de
poética e retórica, e das grandes obras representativas dos vários gêneros,
reportando-se, na sua argumentação, às provas fornecidas pelos grandes autores.
Ao lado do estudo das formas literárias, tinha ele bem presente no espírito o
problema de como dar realização "brasileira" à literatura,
preocupação absorvente dos homens de letras de então, de conformidade com
aquele "instinto de nacionalidade", que caracterizava a época, como
salientou mais tarde (1873) Machado de Assis.
De modo que em Alencar
convergem as duas linhas que iriam dar corpo à nossa consciência literária: a
linha técnica, a formação e evolução dos gêneros e formas; e a linha
"brasileira", o processo de diferenciação da literatura no Brasil.
Alencar pegou aquela primeira linha, consubstanciada num gênero informe,
incaracterístico, qual a ficção romântica, apenas aqui e ali denotando alguma
tentativa mais realizada, e eleva o gênero a um grau de alto desenvolvimento
não só quanto ao aspecto estrutural, mas também temático, oferecendo soluções
que preparariam o caminho de Machado de Assis, a quem passou, por assim dizer,
uma tradição já delineada e viva, que este só teve que desenvolver.
Por outro lado, é mister
registrar, ele permaneceu no equívoco, próprio da superposição e fusão de
culturas, e que tem encontrado soluções várias como a que adotaram os jesuítas
com o artifício do polilingüismo, permaneceu no equívoco de misturar os
elementos das culturas em contato, que resultou na imposição de temas de uma à
outra, ou no uso de pano de fundo local a cercar os heróis que falam e sentem à
européia. É que, no afã de "criar uma literatura mais independente",
como salientou Machado de Assis no ensaio "Instinto de
nacionalidade", havia a tendência na literatura da época a "vestir-se
com as cores do país". Machado considerava com razão errônea a opinião
"que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto
local", e, embora admitisse que "uma literatura nascente deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região",
concluía que "o que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo
sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando
trate de assuntos remotos no tempo e no espaço".
Era a doutrina certa. Mas
foi a posição de Alencar que propiciou a visão mais nítida do problema aos que
nele se inspiraram, como Machado de Assis. Em face da tentativa de exaltação da
terra, segundo a velha tradição que remonta à Carta de Pero Vaz de Caminha, que
recrudescia em Gonçalves de Magalhães, com um poema épico nacional, foi Alencar
quem reagiu apontando o artificialismo com que Magalhães formulava o problema
da nacionalidade em literatura. O assunto estava muito vivo, naquelas décadas,
na mente dos homens de letras, provocado pelo Romantismo. Onde buscar a
nacionalidade para a literatura? Onde encontra ela as suas qualidades
nacionais? Onde reside o novo numa literatura que se constrói a partir do
transplante de uma velha literatura?
***
O problema da nacionalidade
literária foi colocado, dentro da atmosfera do Romantismo, em termos
essencialmente políticos. Os nossos historiadores literários encararam a
autonomia literária conforme essa orientação, tendo Sílvio Romero estabelecido
a capacidade de expressão nacional como critério valorativo de excelência
literária. Misturadas no Romantismo literatura e política, a autonomia política
transferia-se para a literatura e confundiram-se independência política e
independência literária. A literatura era usada pela política, nas campanhas em
prol da independência nacional e da abolição da escravatura, ou como arma de
excitação do espírito guerreiro (Guerra do Paraguai, campanha de Canudos) e da
propaganda republicana. Os gêneros de atividade intelectual mais difundidos
eram a oratória, o jornalismo, o ensaio político, a polêmica, e os homens de
letras típicos do tempo eram os lutadores, os que reuniam as letras e a
política ou a ação pública. A literatura exercia, assim, uma função cívica,
como força de expressão nacionalista.
Dessa maneira, é fácil
compreender como não podiam ser encarados consoante perspectiva estritamente
literária os problemas da literatura, a começar pelo da sua autonomia. Não se
atentou em que a literatura e a política constituíam formas de vida dotadas de
desenvolvimento próprio e que a autonomia de uma não implicava obrigatoriamente
a da outra, como de fato ocorreu no Brasil, a política tendo-se realizado antes
da literária, que é um processo ainda hoje em andamento.
Na verdade, a questão da
autonomia das literaturas coloniais não há que ser colocada em termos
políticos; não deve ter conteúdo e significado político, nem ser identificada
com a independência política. Podem ser paralelas, mas uma não depende da
outra, ambas realizando-se a partir da consolidação da consciência do povo como
povo. A nacionalidade objetiva-se de modo igual quer sob a forma política, quer
pela língua, pela poesia, pela tradição popular e demais formas de vida. Foi o
século XIX que imprimiu ao nacionalismo, à idéia de nação e de nacionalidade, o
sentido político e estatal, graças ao qual a nacionalização era o processo de
integração de massas de povo numa forma política comum, numa forma centralizada
de governo sobre um território unificado, a que correspondem também
manifestações literárias, folclóricas e lingüísticas. Daí decorreu a
exacerbação moderna da nação-estado, tornada um absoluto, fonte de toda a vida
de uma comunidade e de sua arte e literatura. A finalidade da vida nacional
seria alcançar a suprema forma da atividade organizada, o estado soberano, à
qual estariam subordinadas todas as manifestações, mentais e sentimentais, da
vida individual e social, todas movidas por uma consciência comum.
Tal doutrina inspirou os críticos
e historiadores brasileiros a interpretar a autonomia de nossa literatura, para
eles definida em conformidade com a autonomia política, e resultante do anseio
de dar maior expressão à consciência nacional.
A autonomia literária,
todavia, escapa à explicação em termos políticos. É antes de natureza estética.
É a marcha ou a conquista de uma expressão nacional, ou, como definiu Pedro
Henríquez Ureña, é a corrente de esforços "em busca de nossa
expressão"1 e "dentro de ese continuo vital que no admite parelaciones
ni fraccionamientos, es posible senalar etapas, actitudes, momentos que se
suceden y penetran, através de los cuales va integrándose una consciencia o, si
se prefiere, una visión del mundo peculiar... que se expressa con plenitud
gradual, en nuestra literatura", afirma José Antonio Portuondo, ao situar
o fenômeno nas literaturas hispano-americanas de maneira inteiramente aplicável
à literatura brasileira.
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Esse caráter estético, essa
busca de auto-expressão literária, esse desenvolvimento da autoconsciência do
gênio literário brasileiro, terão que ser seguidos nos elementos literários e
nas formas, cuja evolução testemunha aquela caminhada. É o caso acima referido
da ficção. A sua evolução dos inícios românticos até Machado de Assis mostra um
gênero em busca de expressão e, através dele, a consciência literária
conquistando a posse de si mesma e de seus recursos técnicos.
É também o que se observa
com a poesia lírica. Se acompanharmos sua evolução desde o Arcadismo, passando
por Gonçalves Dias, até Castro Alves, verificamos como atingiu com o poeta das
Espumas flutuantes o pleno domínio de uma fisionomia estética, formal,
estilística e temática, nitidamente brasileira. Essa característica, somente
nele alcançada e com ele da maneira mais alta e total, dentro do Romantismo,
notou-a Eça de Queirós em episódio registrado por Afrânio Peixoto no prefácio
às Obras completas de Castro Alves (1921). Ouvindo a leitura das "Aves de
Arribação", deteve-se Eça em certo ponto para exclamar: "Aí está, em
dois versos, toda a poesia dos trópicos". Era a formulação de uma estética
brasileira no lirismo, de uma linguagem poética brasileira.
Portanto, estabelecer a
autonomia literária é descobrir os momentos em que as formas e artifícios
literários assumem o domínio da expressão, como formas e artifícios literários,
prestando-se, ao mesmo tempo, a fixar aspectos novos e uma nova perspectiva
estética, ou uma visão estética de uma nova realidade. Esses momentos foram
encarnados por grandes estilos estéticos, cuja sucessão constitui as etapas
ascensionais em busca da auto-expresão literária. É somenos que hajam sido
importados, desde que aqui tenham sofrido um peculiar processo de adaptação.
É mal situado o problema da
autonomia literária, quando se subordina ao da independência política. São duas
atividades distintas, com diferentes composição e conteúdo, significado e
finalidade, para ser identificadas, como ocorre com a divisão da história literária
brasileira, pelo critério de nacionalidade, em era colonial e era nacional,
caracterizada esta última pelo "processo de divergência em face da
literatura portuguesa" (Soares Amora).
De fato, a formação da
consciência literária nacional remonta a muito antes da época da independência
política. A literatura assumiu fisionomia diferente desde o instante em que se
formou um homem novo na América. Numa conferência em Buenos Aires, em 1939,
Ortega y Gasset 3 afirmou que o colonizador se tornou um homem novo assim que
se firmou no novo mundo, e que a mudança não exigiu séculos para operar-se, mas
foi imediata, apenas consolidada e reforçada com o correr do tempo. Novas
experiências, uma vida nova remodelaram-no, adaptando-o ao ambiente diferente,
criando um novo tipo de sociedade e de economia, em que se fundiram e se
interinfluenciaram culturas autóctones e alienígenas.
Colocado em uma nova
"situação" - para a formação da qual concorriam um meio físico e uma
organização social e econômica peculiar - tinha o homem que criar um estado de
espírito diferente, atitudes, desejos, ideais, esperanças, uma sensibilidade e
psicologia, em suma uma nova concepção da vida e das relações humanas, uma
visão própria da realidade. À nova situação corresponderia, por certo, uma
visão diferente da do europeu, ou da do colono quando ainda vivia na Europa. O
impacto do novo meio fez dele um homem novo, e foi muito forte para que essa
transformação durasse três séculos. E de um homem novo - um mestiço de sangue
ou de cultura - forçosamente surgiria uma nova literatura, como surgiu também
um novo estilo de falar a mesma língua da Metrópole, uma "fala"
diferente. O fenômeno da diferenciação da "fala" é interessante de
mencionar-se, porquanto há um acordo estreito entre a maneira de falar, no
Brasil, a língua portuguesa e a literatura que aqui veio surgindo.
À tentativa de Alencar em
favor de uma nacionalização da linguagem a par da nacionalização literária pelo
indianismo, e que se consolidou em Castro Alves sob a forma de um estilo
brasileiro em poesia, sucedeu, quando da polêmica entre Rui Barbosa e Carneiro
Ribeiro a propósito da redação do Código Civil (1902), uma reação em refluxo
para os cânones portugueses, aumentando a distância entre a língua oral e a
literária, pela restauração artificial de padrões lusos de expressão,
tradicionais ou clássicos. Mas as correntes profundas de
"nacionalismo", operando no inconsciente coletivo e a que se deviam
os surtos de sertanismo e regionalismo, reemergiram de maneira estrondosa em
Euclides da Cunha, sob a forma de um estilo caboclo, e, em certos aspectos, de
um Coelho Neto, como, mais tarde, em Monteiro Lobato (1918). Certamente
impressionado, sobretudo talvez depois do magistral estudo de Araripe Júnior,
"Dois grandes estilos" (1907), Rui Barbosa imprimiu rumo diferente à
sua concepção estético-estilística, incorporando, nos últimos tempos, à sua
prosa notações brasileiras, haja vista os discursos da Campanha Presidencial de
1919, nos quais, como na alusão ao Jeca Tatu de Lobato, evidenciou que a sua
imaginação estava sendo atraída para os motivos locais. O Modernismo viria
consolidar essa evolução, procurando diminuir o divórcio entre a língua falada
e a escrita, numa integração da primeira na segunda.
Assim, uma literatura surge
sempre onde há um povo que vive e sente. É função de seu espírito peculiar. Com
efeito, por maiores que hajam sido os laços de subordinação às vezes procurada
por muitos escritores que porfiavam em considerar-se portugueses, não há como
pretender disfarçar a "novidade" do que no Brasil se produziu desde o
início, quando a imaginação do homem novo passou a construir suas imagens em
termos da nova realidade.
Assim, os quatro séculos de
literatura no Brasil acompanham a marcha do espírito brasileiro, nas suas
mutações e na sua luta pela auto-expressão. A literatura vive essa luta. O
processo de diferenciação não resultou de uma atitude consciente ou de
compulsão, mas simplesmente da aceitação da nova vida. E apesar da presença
constante, até nossos dias, da nutrição de origem estrangeira, sobretudo
portuguesa e francesa, a dinamizar a nossa energia criadora, marcando todos os
movimentos literários, e a testemunhar a nossa imaturidade intelectual, há
desde cedo um americanismo ou brasilidade rugosa e áspera, uma genuína qualidade
nativista, que se apresenta na literatura, condicionando a forma e a matéria, a
estrutura, a temática e a seleção dos assuntos, bem como a atitude, aquele
"sentimento íntimo" a que se referia Machado de Assis, e que indica o
advento de um homem novo.
Em suma, a autonomia da
literatura brasileira, definida como corolário da independência política de
1922, é um problema falsamente colocado. O que releva constatar é o
desenvolvimento das formas literárias em busca de uma expressão brasileira,
diferenciando-se da tradição dos gêneros.
Em vez de procurar na
literatura os reflexos da autonomia política e da formação da consciência
nacional, cumpre à crítica e à história literária investigar a autonomia das
formas, acompanhando a sua evolução para verificar o momento em que ficção,
poema, drama, ensaio, alcançaram, entre nós, se alcançaram, na estrutura e na
temática, um feitio brasileiro típico, peculiar, distinto, que possa
considerar-se uma contribuição nova ao gênero, uma nova tradição.
1. V. P. H. Ureña, Literary
Currents in Hispanic America. Cambridge, Mass., Harvard Univ., 1945.
2. J.A. Portuondo. Períodos
y generaciones en la historiografia literaria hispano-americana (in Cuadernos
americanos, 1948, p. 231-252).
3. Apud Ureña, op. cit, p.
38.
(Introdução à literatura no
Brasil, 1959.)